domingo, 12 de fevereiro de 2017

Lei 818 (continuação)

Capítulo 2 – A morte de Gustavo

    Havia 7 anos e alguns meses do início da Lei 818. As coisas já estavam se acalmando, na medida do possível. Quando a Lei foi instaurada, várias pessoas haviam morrido, mas essa era a ideia, certo? Pessoas continuam morrendo, e vão continuar, independente da Lei. Seu propósito era, digamos, apenas de acelerar as coisas.
    César acordou naquele dia com dor de cabeça, ao lado de Carla. Eles não conseguiram “fazer amor” durante essa noite, o que fez com que ele não dormisse direito. Essa expressão “fazer amor”, tão empregada pelos humanos, é inusitada. Todos os animais “fazem amor”, inclusive casais de louva-a-deus, o que deixa a expressão um tanto quanto estranha, vista a definição de amor. Mas vamos voltar a César: acordou com dor de cabeça. Tentou ver se um banho ajudava, mas não ajudou. Carla gritou por ele, o que o deixou mais irritado. César pensou em fazer um café, pois é evidente que um café ajuda as pessoas (no meu entendimento, fazer café poderia ser chamado de “fazer amor”). Colocou a água para ferver, inseriu o pó no filtro, esperou a água ficar quente, e tentou coar o café. Talvez pela dor de cabeça, talvez por sono, ou talvez por um simples desequilíbrio, César deixou grande parte da água quente misturada com pó de café cair em sua barriga. “Ahhhhhhh SACO!!!” “O que foi, meu bem?” “Nada não! Merda!” Notadamente Carla expressou tristeza, após este último grito de César.
    Depois de se banhar novamente, reclamando da dor devido à água quente, de colocar seu terno, e de tomar café com Carla em silêncio, César saiu para  trabalho. No trânsito, sempre com um fluxo de carros extremamente alto e um fluxo de pessoas bastante nervosas, César continuou sua saga de fúria. Xingou e esbravejou muito com um Fiat Uno, que continha um grande adesivo de uma empresa de telecomunicações na lateral, devido a uma ultrapassagem indevida. Sempre me indaguei o porquê de humanos xingarem carros, de fato quem realiza as proezas são o objeto entre o volante e a poltrona.
    Chegando ao trabalho, César entrou para seu escritório. Vários papéis, várias laudas, vários casos e processos. A formação de César é em direito, se tornou advogado e trabalha numa firma de porte médio. O trabalho de advocacia é estressante, assim como a grande maioria dos trabalhos realizados pelas pessoas. Sempre alguém irá reclamar ou disputar com seu colega qual trabalho é o pior. Humanos e suas humanices. Como a cabeça de César estava bastante alterada nessa manhã, ele fingiu estar trabalhando, ficou olhando os papéis e depois ficou escrevendo comentários na grande rede.
    Assim ele passou a manhã e parte da tarde, até que seu chefe apareceu em sua sala. Estava falando alto, reclamando do atraso em dois processos sobre divórcio e se César havia providenciado documentos a respeito do espólio de uma companhia. Obviamente, César não estava com a menor paciência para seu chefe, e respondeu com emoção: “Claro Doutor, me desculpe. Amanhã arrumarei tudo isto. Hoje estou meio indisposto. Me desculpe.” “Indispostos ficaremos nós com sua falta de profissionalismo. Por favor, providencie tudo para amanhã.” “Tudo bem, me perdoe.” O ser humano é capaz de alguns momentos de auto-humilhação surpreendentes. Se estivéssemos na cabeça de César, ouviríamos o seguinte diálogo: “Olha aqui, seu filho da puta. Acordei num dia de merda... se der arrumo essa desgraça pra você amanhã. Passar bem.”
    No fim do expediente César encontrou com seu colega e amigo Flaviano, no elevador. “Cara, que diazinho viu?” “O que foi, Cezinha?” “Ah... nada... só quero chegar rápido em casa, ver a Carla, assistir uma série e ir dormir. E você?” “Cansado. Querendo chegar em casa rápido também. Dia foi tranquilo, mas cansativo. Dê um alô pra Carla por mim, ok?” “Beleza. Abraço.” “Falou. Qualquer coisa me liga.” E assim César prosseguiu para seu carro, e iniciou a trajetória de volta para sua casa.
    O trânsito estava normalmente assustador. Carros, motos e caminhões voando uns entre os outros pelas vias da avenida. Após ficar 20 minutos parado, provavelmente devido a algum acidente à frente, a via onde César estava prosseguiu com certa rapidez (realizando cálculos precisos com minha onipresença, eu diria a uns 30 km/h). De repente, um Fiat Uno consegue espaço na frente de César, e encosta de leve em seu carro. Após o susto, César olha para o carro, e nele estava o adesivo TeleInternetComunicações LTDA.
    Era isso, a gota d'água. César pegou seu revólver no porta-luvas, andou em direção ao motorista, olhou pra ele e atirou 3 vezes. Uma na cabeça, duas no peito. Largou a arma, pegou o celular. “Flaviano, vem aqui na rodovia 601, perto do kilômetro 278. Acabei de fazer meu primeiro 818.”

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Lei 818 (Título Provisório)

“Mais vale um pássaro na mão que dois voando...”
(ditado popular)
 
(i) Do narrador

    Uma busca rápida pela grande rede pode te contar, de maneira até eficaz, mas não necessariamente verdadeira, o que é um narrador numa história. Normalmente narradores são aquela voz (masculina ou feminina) que você ouve enquanto lê e que te conta o que está acontecendo. Podemos pensar num deus, ou numa deusa, que observa os acontecimentos, sem participar ativamente do conteúdo do texto. Em geral, eles são isentos de personalidade, apenas apresentam a quem lê a obervação do local ou até mesmo características psicológicas de personagens.
    Algumas narrações são realizadas em primeira pessoa, indicando que os próprios personagens narram a história, passando a quem lê a sua versão dos fatos. Isto não acontecerá aqui, pois não há uma ou outra versão dos fatos, apenas a versão correta, que corresponde a que o narrador conta.
    Neste texto informo (eu, o narrador) que sou um ser onipresente e atemporal, mas não onipotente, visto que posso dar informações de qualquer local e de qualquer tempo antes, durante e após esta grande história que vocês estão prestes a ler. Por exemplo, adianto que um dos personagens principais, César Campo, encontra-se preso por ter assassinado duas pessoas. Esta é outra característica do narrador desta magnífica história: vocês vão perceber um certo tom de ironia e sadismo em diversos momentos, e a prepotência divina que os narradores devem ter, quase por definição.
    Aproveitando a ironia e a prepotência mencionadas, peço desculpas pelo uso do termo narrador, indicando um certo teor masculino, mas vou escrever desta forma pois assim desejo. Também de acordo com o meu gosto, e imaginando que a pessoa que lê tem o mínimo de capacidade de interpretação, alternarei a narração em primeira e terceira pessoa. Para aqueles leitores que estão abaixo desta linha mínima, aviso: a narração, estando escrita na primeira ou terceira pessoa, é feita por mim, o narrador, que sou o observador divino desta história.

(ii) Do local e dos personagens

    Esta história se passa num país fictício, com fronteiras fictícias, e com pessoas fictícias vivendo num certo momento de um tempo fictício. Mas todas as características descritas podem ser facilmente refletidas no que o leitor ou a leitora vivem diariamente. Portanto, vamos à descrição de alguns detalhes.
    A cidade principal onde ocorrerão as aventuras deste conto, ou desta anedota, se chama São João. Uma cidade grande, de 6 milhões e meio de habitantes. São João é uma cidade “normal”, entre aspas sim pois normalidade ou não depende da perspectiva. Portanto São João possui avenidas, ruas, muitos carros, políticos, polícia, bombeiros, ladrões, escolas, universidades, hospitais e 5 grandes presídios. São João é uma cidade cinza, com poucos lugares de mata.
    O país onde São João está encravada se chama Cataruba. É um país tropical, possui florestas, um pequeno litoral, planícies e algumas montanhas. As cidades em Cataruba são de porte médio, com 4 cidades grandes como São João. Todas as cidades deste país sofrem das mesmas leis e da mesma doença populacional.
    A civilização de Cataruba é constituída por um povo “normal”. Seres humanos de pele branca, negra, parda, mulata. Homens, mulheres, crianças e idosos. A população jovem de Cataruba sofreu de um declínio muito grande em tempos não muito distantes, principalmente devido à Lei 818. Em especial, foi observado um declínio muito grande entre homens com idade entre 20 e 45 anos. Porém, a situação tem se tornado mais estável nos últimos meses.
    Sobre os personagens principais da história, já foi citado César Campos, homem branco, classe média, fé cristã, 28 anos, que encontra-se preso sob pena de morte, pelo simples fato de ter matado 2 pessoas em sua vida. Curiosidade: em toda a história humana houve deuses de diversas religiões que não foram condenados à morte, mesmo tendo matado muito mais pessoas.
    Demais personagens que podemos citar: Maria Campos, mãe de César; Carla Sampaio, namorada de César; Gustavo Mello, a primeira pessoa que César assassinou; o Maldito, a segunda pessoa que César assassinou; Gil Silva, amigo de César; Marina Duarte, amiga de César; Flaviano Costa, advogado de César; e alguns políticos. Outros personagens surgirão no decorrer da história, mas não é necessário mencionar agora. Apenas espera-se que o leitor entenda que o cerne de tudo ocorre com César.
    As demais pessoas de São João, obviamente também de Cataruba, acabam por viver situações semelhantes às vividas por quem for citado nominalmente neste magnífico texto. Isto se deve à Lei 818.

Capítulo 1 – O 218º dia

    A cela era pequena, sem janelas, pouca iluminação, um colchão fino e empoeirado em cima de uma cama de alvenaria, uma bandeja para realizar as tais necessidades fisiológicas no canto, uma porta grossa, com uma pequena janela em baixo por onde entregavam-lhe o alimento diário. A bandeja foi uma invenção bastante prática: o prisioneiro realizava suas necessidades, e a ela podia ser rotacionada de modo a realizar a limpeza pelo lado de fora da cela. Se o prisioneiro fizesse algo fora da bandeja, o problema era dele para realizar a limpeza.
    A comida era simples: pela manhã café, pão seco; no almoço arroz, feijão, alguma proteína diária, pouca salada, água; na janta mais café e pão seco. Tudo servido em pratos e talheres de plástico fino. Cada prisioneiro era levado para tomar um banho por semana, normalmente acompanhado de um policial que jogava um jato de água nele.
    Basicamente a vida de qualquer prisioneiro era essa, durante cada um dos 365 dias obrigatórios de prisão, até que fosse morto por injeção letal. Até então, ou pelo menos até onde eu sei, e eu sei bastante sobre Cataruba, 100% dos prisioneiros sofreram a pena máxima capital.
    César Campos estava em seu 218º dia encarcerado, e portanto sua mente já não funcionava direito. Várias das coisas que ele disse ou pensou podem conter traços do que realmente ocorreu, mas não necessariamente retratam com certeza os fatos que os levaram até aquele lugar. Lembrava pouco do rosto de várias pessoas, mas em especial ele se lembrava perfeitamente do rosto de sua mãe Maria, de sua namorada Carla, de Gustavo e do Maldito. César conversava quase diariamente com Carla, e pelo menos uma vez por semana ele tentava dialogar com o Maldito. Obviamente, como ambos estavam mortos, a conversa se passava em sua cabeça perturbada.
    Neste dia, após tomar seu café e realizar sua diarreia mensal, César iniciou seu monólogo, entre uma frase e outra ele esperava a resposta. “Maldito, como você está?” “Aham... Deve tá bem não é?” “Aqui está tudo igual. Não sei quanto tempo direito falta.” “Pois é, me conta como estão as coisas aí, Maldito.” Após esta última frase, César ficou prestando atenção, como se o Maldito estivesse respondendo. Esta cena, lamentável e um tanto engraçada do meu ponto de vista, durou por uns 3 minutos. Após isto, César se deitou e dormiu um pouco.
    Pouco antes do almoço, César acordou. Sentou-se na cama, encarou a bandeja, e de repente iniciou sua outra conversa. “Carla, você tá aí?” “Carla... ei Carla...” Depois de alguns segundos continuou. “Oi! Tudo bem com você, meu amor?” “Você já olhou aí se vai dar pra gente se ver quando eu sair daqui?” “Hum, entendo.” “OK, mas você vai conversar direitinho pra gente se ver daqui uns dias, certo?” “Pois então, aqui está igual.” “Não... não sei se é noite. A luz continua igual. Deve ser dia, tá quase na hora do almoço.” “Hoje deve ser arroz, feijão e frango. Pelo menos eu espero ser frango, estou com vontade de comer franguinho.” “Aí teve bacalhau? Faz anos que não como bacalhau. Come aí por mim.” “Ah, você vai passear hoje? Pra praia? Vê se tira uma foto!” “Ah sim, eles não permitem fotos. Mas OK, amanhã você me conta. Beijo.”
    Cinco minutos após ele terminar a conversa, foi usar a bandeja, e enquanto a usava o almoço foi servido. Era arroz, feijão e um hambúrguer semi-congelado. De carne bovina.