Esse também eu tinha tirado do blog, o filho pródigo torna à casa...
VIAGEM
"
Ela
acordou com o senhor que estava ao seu lado pedindo licença,
provavelmente para ir ao banheiro. Notou que ainda era dia, porém,
com o nevoeiro denso que se encontrava do lado de fora era impossível
ver qualquer coisa. As janelas estavam opacas para quem observava de
dentro, tanto pelo nevoeiro quanto pelo fato dos vidros estarem
embaçados. Ao retornar o senhor disse:
-
Olá, acho que perdi o sono. Tudo bem com você?
Ela
pensou consigo mesma “Vai começar a ladainha...” e respondeu:
-
Sim, tudo bem. Também acho que perdi o sono.
-
Estranho o ônibus não ter feito nenhuma parada ainda, não?
Perguntou o senhor.
-
Sinceramente não reparei, meu sono é pesado, se houve alguma parada
não percebi.
-
Teria percebido comigo pedindo passagem.
-
É mesmo – respondeu a mulher num tom obviamente irônico – então
não houve paradas.
-
Desculpe te incomodar, vou tentar ficar quieto.
-
Não se preocupe.
O
homem se calou, mas ambos não conseguiram dormir. Estavam presos em
seus pensamentos mais profundos, por motivos que ficaremos sabendo.
No momento, basta descrevermos o ônibus em que se encontravam. Na
direção se encontrava um senhor pequeno, sério, e calado. Este não
pensava em nada, tinha apenas seu objetivo: levar as pessoas ao seus
destinos. Os passageiros eram 8: a mulher e o homem citados
anteriormente, ela solteira, de vida fácil e um tanto quanto
ranzinza, ele casado, falante, engraçado e com saudade de seus dois
filhos – ambos se encontravam no meio do ônibus, por assim dizer;
logo ao lado deles estava um casal de idosos; duas fileiras à frente
se encontrava um rapaz solteiro; ao lado dele uma mulher e sua
criança; bem mais atrás se encontrava um outro homem, magro e
pálido, com aspecto triste. Esta viagem é sobre a vida destas oito
pessoas.
Ela
olhou para o relógio, mas ele não estava funcionando.
-
Malditas baterias, se o mesmo fosse de corda não haveria esse
problema.
Perguntou
as horas para o senhor, mas este não tinha relógio. “Viagem que
não acaba, e ainda não paramos para esticar as pernas.” Pensou
ela, já entediada. Viu que uma pequena agitação começava a
aparecer no interior do ônibus, provavelmente pelo motivo da falta
de paradas. A criança começava a resmungar quando o rapaz foi falar
ao motorista. Alguns minutos depois ele voltou, pois mesmo sem
relógios e maquinas podemos pensar no tempo passando, e talvez este
seja o verdadeiro sentido de tempo... talvez. O rapaz então
disse:
-
É outro motorista. Fizemos uma parada rápida, não me lembro,
estava dormindo. Este não conversa, apenas dirige. Muito estranho o
caminho que ele esta seguindo, e o nevoeiro lá fora está muito, mas
muito denso. Acho que o motorista pegou um caminho secundário, vou
reclamar junto à empresa assim que chegar em casa.
Ela
olhou de novo para fora, e o rapaz estava certo. O nevoeiro
continuava La, deixando opaca a visão para o exterior. E assim os 8
passageiros permaneceram, todos acordados, durante trinta minutos. O
leitor pode se perguntar como podemos medir a passagem de tempo neste
caso, onde nenhum relógio está funcionando, e dai podemos
perguntar: como você mede, ou sente, a passagem do tempo? Estes
trinta minutos pareceram uma eternidade para todos os passageiros, e
quando nenhum deles conseguia mais se conter, um diálogo começou.
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-
Pois é...
-
Pois é... tem chovido...
-
Acho estranha essa neblina. Muito densa. E este motorista que o rapaz
ali da frente falou que trocaram... muito estranho, não percebi nada
durante a viagem.
-
É... a neblina deve ser por conta do horário, ou da altitude. Disse
ela, nosso primeiro pronome, que a partir de agora chamaremos de
Lívia. Apesar de este ser seu verdadeiro nome, achamos correto dar
nome aos bois... ou às vacas.
-
O rapaz ali da frente voltou um tanto quanto zangado da conversa com
o motorista, não?
-
É...
Lívia,
nosso pronomegênito, era sim uma pessoa chata, de poucas palavras.
Mas ela possuía suas razoes. Provavelmente, nós iremos saber quais
são. Ou mais provavelmente o leitor irá descobrir quais são.
-
Bom, vou ali conversar com o moço. Essa foi a última palavra de
Marcos, que estava sentado ao lado de Lívia, antes de se dirigir à
Paulo, o rapaz que estava logo à frente.
Peço
atenção ao leitor para que fique atento aos nomes. Um autor uma vez
disse que dentro de cada um existe algo sem nome, e que isto somos. O
que estou dizendo é que, na verdade, o que somos está intimamente
ligado ao que representamos. E a representação mais digna, não que
seja real, é a de nossos rótulos. Assim, por mais que seja chato, e
enfadonho para ser mais prolixo, temos que rotular nossos
personagens. Nomes... sendo futilidade ou não, são coisas
necessárias.
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Marcos
se levantou, e com dificuldades, devido aos solavancos e curvas da
estrada, chegou próximo a Paulo. Este estava a olhar para a estrada.
Não que a visse, o que era possível de se enxergar era o asfalto, a
carcaça do ônibus, as linhas curvas que delimitavam o acostamento e
a neblina. A neblina espessa, como se fosse uma nuvem
intransponível.
-
Olá. Tudo bem?
-
Bem.
-
Vi que você foi conversar com o motorista. Mudaram de motorista no
caminho e eu nem vi!!!! Então, como está a situação ali na
‘cabine de comando’?
-
O filho da puta não quis conversar. Ficou olhando para mim, e pra
frente. Como se desse pra enxergar algo, com essa porra de neblina do
caralho na frente.
Ao
lado uma mãe tampava os ouvidos de seu filho, que continuava quieto,
porém prestando atenção em tudo e em todos.
-
Mas ele não falou nada? Sobre mudanças no caminho ou sobre o porquê
da mudança de motorista?
-
Nada, o viado ficou lá, olhando para frente, de vez em quando
olhando para mim e retornando para a direção. Estou puto com isso.
Vou ligar para o 0800 quando chegarmos.
-
Calma, temos quanto tempo de viagem? Umas 3 horas? Vamos parar daqui
a pouco para esticar as pernas, e daí conversamos com o motorista.
Pois então, você trabalha com o que?
-
Trabalho com manutenção. Estava indo pra cidade desta merda de
ônibus para consertar um aparelho, mas... estou vendo que não vai
dar tempo. MERDA!
Marcos
viu que a conversa com Paulo não levaria a lugar nenhum. E decidiu
conversar com Paula, uma coincidência não tão coincidente.
Paulo
continuou a reclamar, olhando para a neblina densa que os cercava, e
assim Marcos começou a conversar com Paula, notando que na parte de
trás do ônibus um murmurinho também começou.
-
Ola, pessoal ta nervoso, não?
-
É. Mas também pudera, a viagem não está simples. Acordei, eu e
meu menino, há pouco. O Paulo está bem nervoso mesmo, queria chegar
rápido, mas... fazer o que não é mesmo? Eu não estou me sentindo
nervosa, mas uma ansiedade estranha, isso sim. Neblina estranha.
-
Então você conhece o colega ali do lado?
-
Sim, é o pai do meu filho.
-
Hum, casados há muito?
-
Casados há muito?
-
Casados sim, separados há pouco.
-
Mil perdoes, não poderia saber disso.
-
Não se preocupe, continuamos bem, é bom pro moleque.
O
moleque continuava prestando atenção em tudo e em todos. Mais ou
menos no mesmo instante que Marcos e Paula começaram esta simpática
conversa, o casal de idosos também iniciava um dialogo entre eles, e
tentaram conversar com Lívia e o doente.
-
Maria, cochilei, como você esta?
-
Bem! Também cochilei. Tempo feio lá fora não é?
-
Sim, sim! Neblina forte. Você não acha moça?
-
Uhum!
-
Você lembra nossa filha!!! Como você se chama?
-
Lívia...
-
Prazer, sou o José, essa é minha esposa Maria. Não parece com a
Carla, Maria?
-
É mesmo. Parece muito. Até o jeitão marrento. Disse a senhora com
os olhos afogados em lagrimas.
-
Mas vocês moram juntos? Quer dizer, o Paulo esta indo trabalhar
noutra cidade... como vocês estão no mesmo ônibus, mal lhe
pergunte?
-
Nos encontramos sem querer na rodoviária, estou indo visitar uma
amiga, que pediu pra eu levar o moleque pra ela conhecer. Amiga da
época de escola, muito legal! E você, esta viajando a trabalho
também?
-
Não, na verdade vou ver uma amiga. E desconversou.
-
Não ligue para minha esposa, ela fica emotiva. A Carla faleceu há
um tempo. Quando comentei que você parece com ela até arrependi.
Mas a verdade é que realmente parece.
-
Que pena, meus sentimentos por vocês.
Todos
iremos morrer, pensou friamente o doente no final do ônibus. Ainda
calado, mas atento.
Lívia
se simpatizou pelo casal, talvez por eles também lembrarem seus
pais. Este foi um bom momento para nosso primeiro pronome, visto que
ela nem se lembrava dos rostos dos pais desde que saiu de casa, um
tanto por vontade própria, outro tanto por ter sido expulsa.
-
Mas vocês vão pra onde mesmo?
-
Estamos indo passear, dizem que nas redondezas da cidade existe um
SPA para pessoas da ‘melhor idade’. Brincou José.
-
Sim, existe sim. Já ouvi falar e dizem que é muito bom. E não só
para a 3ª idade!! Disse Lívia, mostrando o sorriso lindo que poucas
vezes estampava sua face.
-
Quem bom, estamos precisando de um descanso. E de repente um tempo
para namorar. Ai! A expressão, seguida de uma piscadela para Lívia
que a fez também ficar com olhos marejados, foi devido ao tapa que
José levou da esposa pelo flerte publico que ela tinha recebido.
-
Você conhece bem nosso destino? Quero dizer, a cidade, as pessoas,
os lugares?
-
Não. Respondeu Paula, achando estranha a vergonha que Marcos sentiu
de sua pergunta anterior. Na verdade é a primeira vez que vou a esta
cidade. Mas dizem que é bem legal. Espero que o moleque goste.
-
Sim sim, a cidade é bela. Acho que vocês dois vão gostar.
Especialmente você campeão!! E coçou a cabeça do menino, que a
principio não gostou. Muito menos Paulo.
-
Também não conheço, nem sabia que a Paula e meu filho iriam. Agora
vou arrumar um tempo para ir a algum parque com o garoto e brincar
com ele, já que a mãe não deixa em nossa cidade.
-
Não é assim Paulo, você sabe.
Enquanto
isso o garoto observava. Olhos de lince, ouvidos de morcego, cérebro
de gênio. Ele começava a captar a mensagem do ônibus.
Os
assuntos prosseguiram. As pessoas mudando, sem deixar de serem as
mesmas. Se abrindo umas para as outras. Em breve saberemos um pouco,
um resumo, do que cada um destes oito passageiros passou em sua breve
estada nesta viagem.
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O
motorista seguia, rumo ao destino final de todos. Sim, isto é tudo o
que temos para falar dele.
Lívia
era uma mulher linda, corpo escultural, inteligente e muito sensual.
Talvez por isso fosse tão ranzinza, talvez por isso fosse
prostituta. Iniciou a carreira com 17 anos, a primeira vez pela
aventura, mas gostou do dinheiro, do cheiro do papel colorido que
proporcionava a ela roupas e jóias. Muitos de seus clientes se
apaixonaram por ela, inclusive um adolescente, que ela “descabaçou”
quando ela 19 anos, já experiente. O garoto apaixonou, descobriu
onde ela, com os pais, e fez o que qualquer adolescente faria:
escândalo. Os pais descobriram, a expulsaram e nunca mais ela os
viu. Mesmo se quisesse, ambos adoeceram e faleceram algum tempo
depois. Uns dizem que foi por desgosto, outros por idade mesmo. Desde
então Lívia tem feito os homens se apaixonarem por ela, devido ao
seu esplendido desempenho na cama, à sua ginga, e principalmente ao
fato de ela realmente saber fazer um homem se sentir homem. Podemos
resumir sua vida assim: ela gostava do que fazia, e sabia fazer,
tinha orgulho, mas não tanto, e queria sair dessa vida.
Paulo
conheceu Paula na faculdade, ambos calouros, ambos crianças, ambos
inexperientes, ambos apaixonados. O namoro durou muito, durante o
período da faculdade, quatro anos. O moleque nasceu durante, com
dois anos de relacionamento. Claro que isto atrapalhou os cursos, e
claro também que atrapalhou o curso dela. Ele se formou. Eles se
casaram. Eles não foram felizes. Eles se separaram, e desde então
conseguem viver. Coisa que não faziam,quando estavam juntos, Paulo
era violento e batia no moleque, e em Paula. Ela aceitava apanhar,
desde que o garoto não sofresse. Mas ele via, ouvia, e sofria.
Talvez mais que todos. Não, não era o garoto o culpado de tanta
raiva, mas sim uma podridão interior que Paulo guardava, ninguém,
nem ele mesmo, sabe de onde veio tanto rancor. Apensar disto, o
moleque achava que a culpa era dele, e todos queriam sair dessa
vida.
José
e Maria, um casal clichê. Mas este casal era esplendoroso. Um amor
incondicional, sem traições, com cumplicidade, com sentimento, com
compreensão, com amor. Tiveram uma filha, Carla, que faleceu, vitima
de solidão, depressão, desespero, infantilidade, como queiram.
Desde então, José e Maria tem vivido como a filha, solitários.
Viveram a melhor vida juntos, fingiam que continuavam vivendo com o
mínimo de felicidade, mas queriam sair dessa vida.
Marcos
era um homem casado, bem empregado, salários altos, com bens,
propriedades. Um homem inteligente, brincalhão. Amado por todos. E
principalmente por todas. Apesar de uma imensa vergonha que sentia,
não conseguia ficar um tempo grande (por grande, leia-se alguns
meses, dois por exemplo) sem trair sua mulher. Não caro leitor, sua
mulher não era feia, era linda. Um corpo muito bonito. Inteligente,
simpática, conversava sobre tudo, compartilhava as coisas sobre
Marcos. Mas ele não se contentava. Seu corpo e sua mente o obrigavam
a gozar dentro de outra mulher. Este era seu vício e seu prazer, e
ele queria sair dessa vida.
O
doente, este não nomearemos, pode ter qualquer nome. O passageiro
doente era uma pessoa inteligente, era uma pessoa simpática, era uma
pessoa amável, era uma pessoa querida, era uma pessoa cativante.
ERA. Depois que descobriu sua doença ficou doente. Doente de cabeça.
Preconceito de si próprio se iguala a qualquer tipo de preconceito.
Ele tinha nojo de se tocar, tendo inclusive cortado as mãos devido
aos socos que dava no espelho ao ver seu rosto pálido e magoado. Há
quem diga que a pior doença dele, talvez a única, era a doença de
sua mente. E ele, assim como os outros, queria sair dessa
vida.
Desta
forma contamos o resumo da viagem de nossos passageiros, uma viagem
estranha, conturbada, e com um final feliz, por incrível que pareça.
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Prosseguiram
a conversa por umas duas horas (note que este tempo vem da nossa
imaginação, que os vemos por fora), neste momento as únicas
pessoas que não conversavam eram o doente e o moleque.
Paulo
continuava tentando ser simpático com o filho, ao mesmo tempo em que
tentava ser antipático com a esposa. Nesse fogo cruzado estava
Marcos, que se interessou por Paula, talvez devido ao fetiche dela
ser mãe, e do ex-esposo estar tão perto. Às vezes Marcos jogava e
a estratégia era ser o oposto do que Paulo era, o que agradava
Paula, e ela demonstrava isso, principalmente para irritar, ou tentar
reconquistar, Paulo.
Na
parte de trás do ônibus, José e Maria estavam muito felizes por
ter um pedaço de sua filha de volta, e Lívia feliz por ter um
pedaço de seus pais de volta. Os três conversavam e riam como se
conhecessem há muito tempo, e isto os alegrava.
Num
dado momento todos pararam de conversar e se entreolharam, todos os
oito passageiros. Por um instante entenderam. E continuaram
conversando. Mesmo os que não estavam conversando entenderam.
Na
verdade, o moleque, a criança, foi a primeira a entender. Mas não
quis parar, não queria deixar de ver o pai e a mãe juntos,
flertando, como que se gostasse de ver que eles ainda sentiam algo um
pelo outro. Mas viu que não. Viu que tudo, em todos, em todos os
oito, tudo não passava de um grande teatro. Um teatro verdadeiro,
ele compreendeu. Era verdade que Lívia sentia algo pelos seus pais,
era verdade que José e Maria sentiam muito a falta de Carla, era
verdade que o doente era a pessoa doente que ele era, era verdade que
Marcos flertava, que seu pai gostava dele, que a mãe além de amá-lo
amava também o pai. Era verdade. Assim como era verdade que ele
deveria ser a pessoa que mostraria a todos o que estava
acontecendo.
Ele
se levantou. Olhou para todos. Todos pararam de conversar, sabiam o
que estava acontecendo, mas tinham medo. Olhou dentro dos olhos de
cada um. Com a profundidade de quem diz: “Se cuidem. Entendam.
Vocês tinham que ter sido mais, e melhores.” E disse:
-
Eu vou.
O
ônibus parou. A neblina ainda estava lá. Mas eles estavam
enxergando. Ele saiu. Todos se olharam. Não estavam espantados. Não
estavam mais com medo. O doente saiu logo após o garoto. Haviam
finalmente chegado ao destino final."