terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Face

Como eu tinha retirado esse texto (já modificado) do blog, vou retornar com o mesmo. Primeira coisa que escrevi, em 2009.

Bjonaomeliga

FACE

"Ao acordar, com a cabeça estourando – provavelmente ressaca por ter bebido muito vinho.... ele realmente acreditava que a bebida tinha efeitos afrodisíacos – sentou do lado direito da cama. Olhou para o lado e sua esposa estava lá, encoberta pelo edredom. “Nunca mais eu bebo!!!!!!!” pensou, cinicamente. Levantou-se, muito devagar para que seus tímpanos não explodissem, e foi ao banheiro. Lavou o rosto, com vergonha de olhar para o espelho. Tentou se lembrar do rosto de sua esposa, e a lembrança demorou a chegar... este foi o primeiro sinal. Escovou os dentes, ainda sem olhar para sua face – se olhasse sentiria vergonha: os olhos com uma coloração vermelha-amarelada, olheiras profundas, pele pálida e ressecada... típico para uma pessoa de ressaca, porém não era somente isso... havia também a superfície de seu rosto... ainda havia uma pessoa ali.
Foi à cozinha preparar seu café, mas antes, vestido apenas de cueca, foi ao encontro de sua esposa, a única pessoa que ele realmente amava, e lhe deu um beijo na testa. A mulher respondeu com um sorriso, puxando o edredom para perto de si, e um gemido como quem diz: “Hum, deixa eu dormir mais um pouco, meu bem!!!” Ele sorriu e nesse momento acreditou que sim, o amor pode existir e existe. Acreditou que o ser humano, ou ele próprio, podia confiar noutro incondicionalmente. E isto o alegrou.
Chegando à cozinha, ligou a TV para ouvir o noticiário. Escutou o presidente falando que o país iria sair da situação econômica crítica que se encontrava, que não haveria problemas. Pensou consigo: “Filho da puta, não tem vergonha nenhuma na cara!!!!” Ele não imaginava o quanto este pensamento, a princípio ingênuo, seria tão real.
Foi ao quarto, se vestiu e dando outro beijo em sua esposa saiu para o trabalho. De carro, observando os outdoors ficou pensando: “Quanta gente trabalha mal... todas as rostos estão desfocados!” Este era o segundo sinal. Chegando ao serviço não notou nada de estranho, ele sempre desviava o olhar das pessoas. Porém, ao encontrar com sua secretária teve seu primeiro surto. O rosto da mulher não somente se encontrava desfocado, mas totalmente desfigurado. Após o susto inicial, visível para todos que estavam ao redor, ele perguntou: “O que aconteceu com você? Quem te bateu? Vá ao médico AGORA!!!!!” Sem entender o porquê a secretaria perguntou: “Mas por que doutor? Estou normal, nada aconteceu comigo?” Ele entrou para seu escritório rapidamente, encharcado de suor, e baixou sua cabeça sobre os braços, pedindo para que ninguém o incomodasse.
Logo após sua entrada no escritório, sua secretária começou a falar com as outras pessoas: “Sim, ele é louco. Cumprimenta, é uma pessoa gentil. Mas não me dá aumento nenhum e ainda por cima fica dando em cima de mim.” A secretária apenas dizia que seu chefe a cantava para que ela ganhasse ‘elogios’ dos outros funcionários. Mais duas pessoas tentaram entrar em seu escritório: seu subordinado direto – que tinha compromissos irremediáveis a respeito da empresa, e puxa-saco de mão cheia – e seu chefe, que ficou preocupado pela reação do subordinado e da secretária. Além disso, seu chefe era uma pessoa extremamente arrogante e mesquinha, o que deixava nosso herói, na maior parte das vezes, furioso.
Ele decidiu voltar para casa depois que todos foram embora... a última vez que olhou para o rosto de sua secretária ele teve ânsias de vômitos.... várias. Foi para casa, evitando olhar para os outdoors, pois eles pareciam sempre mais desfigurados. As pessoas nos carros, estas também se aparentavam desfiguradas, com os rostos como se tivessem sido alterados num programa de computador. Apenas as crianças, a maior parte delas pelo menos, se aparentavam normais, com rostos, faces, de pessoas.... PESSOAS.
Chegando em casa hesitou em olhar para o rosto de sua esposa e aos prantos a abraçou. Ela sem entender tentou acalmá-lo, fazendo carinho e buscando um olhar para que compreendesse. Porém... nada. E assim se passaram longuíssimos 5 minutos, com ambos chorando compulsivamente. Após sua esposa implorar para que ele dissesse, ele olhou e viu: a mulher mais linda, o rosto mais lindo, a face mais linda, o corpo mais lindo, os seios mais lindos. Chorando e rindo ao mesmo tempo ele a beijou, como se fosse à primeira vez, um beijo longo, quente, apaixonado. E ali, onde estavam se amaram.
A noite que se seguiu depois do êxtase de gozo de ambos foi tranqüila. Dormiram como pedra. Na manha seguinte, ele acordou como de costume, olhou para sua esposa, que se encontrava coberta pelo edredom. Pensou seriamente que o dia anterior foi um sonho. Foi ao banheiro, e mesmo tendo a certeza do sonho, vacilou ao olhar para o espelho. Olhou e lá estava ele, com um rosto muito melhor que o do dia anterior. Neste dia não beijou sua esposa antes de preparar o café.
Tomou seu café como de costume, foi ao trabalho e novamente os outdoors estavam todos embaçados e desfigurados. Suando feito um porco devido à alucinação ele chegou ao trabalho e viu que todos estavam desfigurados. As faces horríveis, como que se despedaçassem da cabeça... a pele desfigurada, o nariz torto, se confundindo com o espaço onde antes devia estar a boca. No lugar da testa estava a boca... mas não uma boca normal, uma boca grande, com vários dentes, como se fosse a boca de um tubarão. Os cabelos estavam normais, apenas a feição estava diferente. Assustado e suando horrores, ele correu para sua sala, gritando para sua secretária – que apontava para ele e fazia gestos que ele estava louco – para não deixar ninguém entrar. Pediu dispensa do seu chefe, que muito a contragosto o deixou ir para casa.
Chegando a sua casa, indo numa mistura de velocidades, olhou para sua esposa e a viu! Gritou e chorou novamente, e ela, sempre cúmplice, chorou ao ver seu amado em tal situação. Ele pediu licença e foi tomar banho. Após um banho demorado, implorou que fosse deixado a sós. Foi ver televisão, e o espanto não foi o mesmo: todas as pessoas se encontravam desfiguradas. Tanto políticos, quanto pessoas entrevistadas da rua, quanto os apresentadores. E todas da mesma forma: o rosto completamente desfigurado, como que por alguma forma de manipulação informatizada. Ficou sozinho, vendo TV, por três dias.
Sua esposa tentava fazer com que ele comesse, mas ele apenas pegava um biscoito aqui, outro acolá. Estava ‘entretido’ demais, vendo todos os canais de TV que podia ver, e comparando as faces. Todas desfiguradas. Para ele, apenas dois rostos se encontravam normais: o dele e o de sua esposa.
E assim nosso herói passou por três meses, isolado em sua sala de TV, vendo os programas... todos... insistindo que tudo aquilo era paranoia de sua cabeça. Ele tentou ir ao médico, que apenas lhe indicou medicamentos contra alucinações e calmantes, que de absolutamente nada serviram. Os psicólogos muito menos, não conseguiam explicação nenhuma para sua ‘paranoia’.
Seus amigos se afastaram, depois desses primeiros três meses mais nenhum aparecia, mesmo por que ao vê-los nosso herói os xingava e pedia, não ele não pedia... ele gritava e obrigava, que todos saíssem de sua casa, com seus rostos desfigurados. E nesses três meses ele concluiu algo: apenas uma pessoa merecia sua confiança, apenas uma pessoa era de respeito, apenas uma possuía caráter, apenas uma se preocupava realmente com o próximo, apenas uma (ou duas?) sentiam realmente o que era amar. Esta pessoa era a única que ele não via o rosto desfigurado: sua esposa. E isto fez com que ele a amasse ainda mais.
Um ano se passou. Sua esposa após os 10 meses da ‘doença’ do marido, começou a se afastar, a se tornar uma pessoa triste e agoniada. E nosso herói ainda a via, e isso ainda alegrava os dois. Ou pelo menos era isso que ele pensava. Um belo dia, um ano após sua repentina ‘alucinação’, nosso herói decidiu passear, pois sua esposa estava demorando muito tempo para trazer os mantimentos. Este tipo de atraso havia começado há uns dois meses, tempo em que o rosto da esposa começou a se desfocar.
Andando pela vizinhança, evitando os vizinhos, e estes o evitando, ele observou sua esposa, no supermercado, abraçada com um homem. Mas ela não estava somente abraçada, pedindo ajuda, ou conselho, e o homem não a estava consolando pelo flagelo do marido. Eles estavam se beijando, se abraçando, se amando. O que mais nosso herói podia fazer a não ser chorar?
Voltando para casa, com todas estas exclamações na cabeça, nosso herói chegou à uma bela conclusão. Foi ao banheiro, onde ele olhara a primeira face há um ano atrás, a sua própria face. Nas mãos uma faca, grande, afiada, pontiaguda. Olhou para seu rosto, para sua face. E sorriu... fincando a faca no peito. Menos uma face no mundo."

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